Inquisição e Gastronomia

A Gastronomia Espanhola e a Inquisição

Gastronomia Espanhola e a Inquisição

A gastronomia da Espanha é reconhecida internacionalmente. Pratos como a paella, o gazpacho e o jamón são verdadeiros prazeres para se desfrutar. Porém, muitas dessas iguarias possuem o seu passado atrelado com uma terrível instituição: A Inquisição Espanhola.

No texto de hoje vamos mergulhar nesse passado sombrio e compreender como a doutrinação cristã influenciou os pratos mais conhecidos da gastronomia espanhola.

 

Espanha: uma mistura de temperos

A deliciosa gastronomia espanhola reflete a variedade e a riqueza de sua história. Terra de passagem e disputa, o território onde hoje esta situada a Espanha foi frequentado por celtas, fenícios, gregos, romanos, árabes, judeus e cristãos. Cada um desses povos deixou uma marca na forma de se comer e de preparar os alimentos.

Por exemplo, foram os mercadores fenícios e, logo depois, os romanos que trouxeram o azeite, o vinho e o alho, elementos tão típicos da gastronomia espanhola. Já os árabes foram os grandes responsáveis pela disseminação dos temperos como açafrão, orégano, flores de laranja, baunilha, coentro e muitos outros sabores.

zoco
Os árabes e seu amor pelos temperos.

A nossa América também contribuiu, pois dela vieram alimentos tão “típicos” encontrados nas mesas espanholas. Os tomates, as batatas e os pimentões possuem a sua origem no continente americano, trazido na época das grandes navegações.

Todos estes ingredientes permitiram uma festa de cores e sabores, que fazem da gastronomia espanhola uma das mais pulsantes e interessantes da Europa.

Porém, houve um intervalo de tempo que se destacou na consolidação de alguns costumes e tradições espanhóis. Um período conhecido como “A Reconquista”.

+Leia mais sobre o passado romano da Espanha em : Conheça Itálica, a mais antiga cidade romana da Espanha.

 

A Reconquista e a imposição do Cristianismo

Quando pensamos nas cruzadas, nossa imaginação logo é levada para Jerusalém e a Palestina. Porém, é importante lembrarmos que houveram diversas guerras religiosas ao longo da Idade Média, em terras tão distantes como o Leste Europeu, a Finlândia e os Balcãs. Todas elas recebiam da Igreja Católica a definição de cruzadas da fé.

Na Península Ibérica, houveram várias cruzadas com o objetivo de expulsar os muçulmanos, que haviam conquistado quase todo o território no século VII. Essas guerras são chamas de “Reconquista”, um período de mais de 800 anos, onde os reinos cristãos foram aumentando seu poder e influência ao conquistar territórios das mãos dos muçulmanos.

Esse espirito das cruzadas marcou fortemente a identidade espanhola, pois estes movimentos deram origem a unificação dos reinos no século XV, culminando na conquista do ultimo bastião muçulmano, a cidade de Granada, em 1492.

Conquista de Granada
A conquista de Granada em 1492 pelos Reis Católicos.

A união da Espanha como um país moderno esta relacionado com essas guerras e a fé cristã. Para garantir a continuação dessa identidade nacional, controlar qualquer comportamento desviante e expulsar os últimos resquícios das antigas religiões, foi criada uma instituição com grande poder: o Santo Ofício.

 

A Inquisição Espanhola

Muitas pessoas associam a Inquisição com a Idade Média, mas ela foi criada na Espanha apenas em 1480. Seu nome oficial era o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, e foi criada em uma bula papal com o objetivo de combater heresias e preservar a ortodoxia da fé católica em seu domínios.

Antes do Santo Oficio existiam julgamentos religiosos com objetivos específicos, que duravam um tempo determinado, contra algum caso de heresia cometida em determinada região. Exemplos destes, foram alguns ataques esporádicos cometidos contra comunidades judaicas na Europa ou a cruzada ocorrida no século XIII no sul da França contra os cátaros.

Dessa forma, a inquisição não é uma invenção espanhola, mas foi neste país que ela assumiu um caráter de organismo de controle e castigo permanentes. Qualquer pessoa, seja plebeu ou nobre, poderia ser acusado, aprisionado, torturado e morto.

Inquisição
O poder da inquisição na Espanha.

Com a expulsão dos judeus em 1492, todos os que ficaram no país foram considerados automaticamente cristãos. Foi um período de grande sofrimento e destruição cultural para as pessoas que foram obrigadas a se converterem. Comumente chamadas de “novos cristão”, esses grupos eram testados e investigados sempre que tinham a oportunidade.

A inquisição espanhola foi uma instituição com muito poder, influenciando de forma marcante a vida da população. Oficialmente, ela só foi encerrada na Espanha em 1834. Nos mais de 400 anos de atuação, ela interferiu na cultura, nos costumes, nos hábitos, e até na alimentação das pessoas.

 

A Influência da Inquisição na Culinária Espanhola

A alimentação é um dos pilares da cultura. Todos os povos possuem costumes e tradições onde a comida possui um papel central. Seja em formato de proibições, festas, etiquetas, tabus ou temperos. Dito de outra maneira, o que você come pode determinar suas origens e valores.

Praticamente todas as religiões do mundo possuem algum tipo de código de conduta em relação aos alimentos. Da mesma maneira também apresentam festas e momentos de confraternização sociais que são centradas no encontro público, tendo nos alimentos um local de destaque.

Por esses motivos, não é de se estranhar que a Inquisição prestasse especial atenção nos tipos de alimentos consumidos pelas pessoas. Comer carne vermelha na véspera da Páscoa, não jantar em determinado período do ano ou simplesmente se recusar a comer um mexilhão (alimento proibido no judaísmo) poderia ser um sinal de que você não era um “verdadeiro cristão”.

A seguir vamos ver alguns exemplos de alimentos consagrados da mesa espanhola, que foram especialmente examinados pelos inquisidores ao longo do tempo. Todos estes exemplos foram tirados de “autos da fé”, documentos onde eram descritos os interrogatórios da Inquisição.

Autos da Fé
Um Auto da Fé sendo realizado em Madrid no século XVI.

 

A carne de porco

A carne suína esta fortemente presente na gastronomia espanhola. O porco pode ser encontrado em diversos pratos regionais, como nos famosos Cocido Gallego, na Fabada Asturiana ou no Cochinillo de Segóvia. Sem falar nos deliciosos embutidos, entre eles o célebre Jamón.

O que poucos sabem é que essa predominância da carne suína pela Espanha não foi algo natural, mas sim incentivado pela Igreja. Vale lembrarmos que a religião islâmica e judaica proíbem o consumo da carne de porco. A Inquisição aproveitava essas restrições alimentares para verificar se haviam ou não “falsos convertidos” em uma região.

Além de diminuírem os impostos da produção e venda dos produtos a base de carne suína, a Inquisição incentivava o consumo nas festas públicas, em casamentos e em outros eventos sociais. Momentos ideais para observar o comportamento alimentar das pessoas.

Também estimulavam os vizinhos a observarem os seus pares. Existem relatos dos tribunais da inquisição onde as acusações continham descrições como: “ausência de embutidos na casa” ou “a casa não cheirava a um lar cristão” (cadê o cheiro do bacon?).

Este é um bom exemplo do poder da cultura na escolha do que comemos. Os cristão tinham o costume de cozinhar alimentos na gordura do porco, enquanto os muçulmanos e judeus utilizavam o azeite. Vários relatos dos inquisidores falam do nojo que os judeus e muçulmanos convertidos possuíam da carne de porco, onde em alguns casos chegavam a vomitar ao sentir o cheiro de toucinho frito (aroma que para alguns de nós é inebriante).

Aliás, existia uma expressão popular da época que dizia: “Más cristianos hizo el jamón que la Santa Inquisición” (O jamón converteu mais cristãos do que a Santa Inquisição). Uma forma jocosa de falar sobre esse saboroso presunto, mas uma verdadeira prova da relação entre a Inquisição e a gastronomia na Espanha.

Jamon
A arte de cortar um delicioso Jamón.

+Conheça mais sobre o passado judeu espanhol em: Um Passeio pelo Antigo Bairro Judeu de Sevilha

 

O Coentro

O Coentro é uma erva originária do Mediterrâneo, amplamente utilizada por vários povos da região. Seus poderes medicinais eram amplamente estudados pela medicina hebraica, onde era recomendada para combater inflamações, problemas urinários e por suas propriedades digestivas.

Coentro
O Coentro, uma erva proibida.

Neste ponto é importante lembrarmos que muitos avanços da medicina moderna ocorreram nos domínios medievais muçulmanos, onde ervas como o coentro eram estudadas por médicos judeus e islâmicos. Para eles, a comida faz parte da medicina, o que, consequentemente, acabava interferindo na escolha dos temperos nos alimentos.

Na Espanha, o coentro foi amplamente introduzido pelos muçulmanos, que eram admiradores da planta por seus podres afrodisíacos e aromáticos. Eles influenciaram imensamente a gastronomia, principalmente o da Andaluzia, onde ervas, hortaliças e legumes são utilizados para refrescar o intenso calor até os dias de hoje.

Com a reconquista cristã, o coentro foi logo associado aos costumes judeus e muçulmanos. A Inquisição Espanhola começou uma verdadeira perseguição ao uso desta planta, onde era vista como uma erva utilizada por bruxas em feitiçarias. Do século XV em diante, diversas pessoas foram levadas aos tribunais da inquisição simplesmente por serem vistos utilizando o coentro (ou erva judaica, como era chamada).

Com toda esta perseguição, as pessoas deixaram de usar o coentro, dando preferência para outras ervas como o orégano e a salsinha. Por sinal, este é o motivo pelo perejil (a salsa) ser tão dominante na gastronomia espanhola. Basta olhar um livro de receitas típicas para ver que quase todos os pratos são temperados com essa erva.

 

O Vinho

O vinho é uma presença quase unânime na mesa espanhola. Seja nas festas, nas refeições diárias e nas reuniões em família. Não é de se estranhar que trata-se de uma das bebidas mais consumidas na Espanha, onde é produzido em mais de 70 regiões com o selo “denominação de origem” no país.

O vinho foi trazido para a Espanha pelos romanos, mas o consumo se manteve, mesmo depois da queda do império, graças a bebida estar associada à eucaristia cristã. Muitas das técnicas de cultivo se mantiveram ou foram melhoradas nos diversos mosteiros e abadias da cristandade.

Vinho espanhol
O vinho: sempre presente na gastronomia espanhola.

Por outro lado, a bebida também foi utilizada pela Inquisição para observar os costumes da população. É importante lembramos que a religião islâmica proíbe o consumo de bebidas alcoólicas, e muitos judeus se sentiam traindo a sua fé ao consumir a bebida no momento da eucaristia. Esses elementos faziam do consumo do vinho um indicador da fé de quem a bebia.

Podemos observar essa situação em outra expressão antiga, onde se falava que: “Jarro sin vino, olla sin tocino, mesa de judío y morisco” (Caneca sem vinho, panela sem toucinho: mesa de judeu e mouro). Ausências perigosas, que poderiam levar facilmente uma pessoa para a fogueira.

 

Os períodos de jejum e oração

A Igreja Católica controlava com atenção ás praticas gastronômicas da população, especialmente nos dias santos e em períodos onde os fieis deveriam realizar abstinências de determinados tipos de alimentos. Após o século XV, foram realizados tantos decretos papais, onde obrigavam a realizar restrições a algum tipo de alimento, que eles chegavam a quase metade de um ano.

Por exemplo, um cristão não poderia consumir carne, manteiga e ovos nas sextas-feiras ou por todo o período da quaresma, que antecede a Páscoa. Nesse período era comum consumir legumes, azeite e pescado. Muitos pratos reconhecidos da gastronomia espanhola, como o Gazpacho, o Calamares ou a Paella se tornaram a base da alimentação nesses momentos de abstinência religiosa.

Paella
A Paella: um prato típico espanhol.

Esses períodos de restrições e jejuns eram analisados pela Inquisição, onde buscavam descumprimentos por parte dos cristãos ou comportamentos que expusessem os “falsos-convertidos”. Importante lembrar, que as religiões islâmicas e judaicas também possuem períodos de jejuns e comedimento de alimentos, como o Ramadã ou o Yom Kipur. Nessas datas se realizava festas, justamente com os alimentos proibidos dessas religiões, simplesmente para verificar quem cumpria ou não essas tradições.

Alguns relatos antigos falam de judeus e árabes convertidos que fritavam sardinhas com muito alho para esconderem o fato de estarem, na verdade, fazendo um belo bife em plena sexta-feira santa. Uma maneira de manterem suas tradições, mesmo correndo risco de perderem a sua vida.

 

+Leia mais sobre gastronomia espanhola em: 11 Comidas da Espanha – pratos para mergulhar na cultura espanhola.

 

E você? Já tinha pensado em como a história influencia no que esta no seu prato? Comente com a gente se conhece algum outro exemplo ou influencias do tempo na gastronomia.

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Um abraço e até breve!

 

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